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  • Foto do escritorFlavia Vivacqua

MAXIMIZANDO AS BORDAS

Atualizado: 6 de mai. de 2023

A Revolta dos Burros, Nova Pasta / foto de Marcos Vilas Boas


Na ecologia, as bordas são o espaço limite entre territórios e sabidamente o lugar mais fértil e produtivo que podemos encontrar para a biodiversidade. É ali, na borda, que se estabelece o campo de encontro entre ecossistemas distintos, possibilitando a mescla e potencializando a vida, gerando assim maior resiliência[1] ambiental e preservação de espécies. Além disso, uma borda sinuosa é sempre mais extensa que uma linha reta delimitante, ainda que conecte os mesmos dois pontos, o que também a faz mais criativamente potente.


Dessa forma, na permacultura,[2] um conceito muito utilizado é o de maximizar as bordas como uma prática de potencializar a biodiversidade para gerar maior resiliência.

Maximizar as bordas no contexto da arte e da cultura colaborativa, na prática expressiva dos coletivos de arte, torna-se ação potencializadora para o design de processos de transformação.


Transformação social e cultural, em maior ou menor grau, de todos os envolvidos na ação: proponentes ou mediadores da ação; participantes ativados no processo ou simples observadores; também fica incluído o ambiente, no qual esses encontros maximizadores se dão.


Atuar nas bordas da urbanidade, do público e do privado, do micro e do macro, será certamente deparar-se com as complexas e múltiplas questões da cidade. A especulação imobiliária, o apagamento da memória e história, o apagamento de espaços de convivência e afetos… Tudo isso somado a todas as questões de classe, de gênero, de etnia, de descompasso, de violência, de miséria, de corrupção, de equívocos… Encontro certo e marcado com tudo aquilo que ainda precisamos reparar e superar, e ainda outros tantos encontros com o que necessita ser reconhecido e valorizado.


Para além da curiosidade e da sede por descobrir algo novo simplesmente, há a indignação e o inconformismo diante da miséria material e imaterial e da injustiça social, do comodismo e da alienação. Essas paisagens, vistas apenas de uma única janela, podem facilmente cair nas conhecidas práticas panfletárias e ativistas de simples negação do descontente, sem proposição possível. Todo o cuidado é pouco, e esses artistas sabem disso!


Os coletivos de arte atuantes na cidade compreendem o centro como periferia e a periferia como centro, nas bordas sociais e culturais que são contornadas e borradas ao transpor as tantas fronteiras físicas e simbólicas. Na busca por ações significativas, muitas práticas passam, por exemplo, pela compreensão da importância do fortalecimento dos laços afetivos, do humor, do resgate de saberes antigos ou mesmo ancestrais, da atuação contundentemente na ruptura dos padrões que são alienadamente vívidos, para que transformações e sabedorias possam manifestar-se.


Uma sabedoria interessante nos processos colaborativos é a integração inteligente de diferentes pontos de vistas e habilidades. Dessa forma, o tempo e o espaço, bem como o ser que os presentifica, ainda que com toda sua significação, ampliam a capacidade de vivenciar uma percepção do outro e de si, diretamente aberta e surpreendentemente criativa.


As práticas artísticas dos coletivos atuantes “Na Borda” têm a qualidade da consciência política e estética, ativada para o estabelecimento de um contato presencial que dispara uma reflexão crítica e criativa do contexto ou situação em que se vê chamada a intervir na busca por mudanças qualitativas no cotidiano e modos de viver dos territórios da cidade. Reativas ou ativadoras, muitas vezes provocadoras, essas escolhas e fazeres das práticas artísticas atuais não estão alheios às pequenas e múltiplas transformações de cada ser humano ali presente.


As práticas artísticas atuais também estão focadas em uma variedade de experiências com diferentes suportes, linguagens, pedagogias, metodologias, ferramentas, adereços, personagens e lugares.


Algumas palavras-chaves e temas são forte e recorrentemente ativados, como:


O RELACIONAR-SE, com qualidade, intensidade, criatividade e potencialização das singularidades de cada ser humano, que são estimulados pelo coletivo em ação ou mediados por esse agente-criativo-e-múltiplo, capaz de propor transformações para si mesmo e seus comportamentos como um convite para o outro. Então, esse ser hábil de suas próprias habilidades, empoderado de seus desejos, sábio de novos tempos, ritmos e espaços, capaz de assumir sua nova identidade, está pronto para entrar em relação com outros, consciente de sua singularidade, para que possam colaborar com ações de conviver processos de mudança no mundo.


O SONHAR, formas de empoderar o cidadão em seu direito de poder ter considerado o desejo que se quer ver ocupando os espaços e imaginários do mundo. Permite a criação imagética de lugares possíveis e impossíveis, que estabelece os desejos e proposições de um lugar no mundo que realize o sentido de pertencimento e outra lógica, comunitariamente resiliente, para o viver cotidiano. Compreende também que o diverso e múltiplo que emerge das pessoas envolvidas no processo se trata de uma inteligência coletiva capaz de mostrar-se inventiva, divertida, irônica, crítica em relação à realidade, adequada à necessidade, lúdica ou curiosamente absurda. Contudo, o sonhar abordado no fazer dos coletivos maximizadores da borda não é aquele romântico alienante, mas justamente o libertador de convenções limitadas, estimulador de criatividade, canal de saberes possíveis às ações revolucionárias, buscando verdadeiramente um compreender mais amplo de possibilidades e corajosamente ousado no agir na realidade.


O JOGAR e a LUDICIDADE, muitas vezes relacionados à identidade e seus impactos nas escolhas, construções, conscientização e liberdade. O jogo, que se quer lúdico, de se reconhecer e também o outro em meio aos padrões culturalmente estabelecidos ou em nossas escolhas sobre temas prioritários é submetido ao acaso, como no lance de dados ou em um baralho e sua disposição. Colocando sobre a mesa nós mesmos a nós mesmos. Explicitando o que acreditamos, o que desejamos, o que estranhamos ou, ainda, o que tememos.


No maximizar as bordas, a prática coletiva apresenta facetas simultaneamente REAL e SURREAL com o viver. Por vezes, explicitando uma prática crítica e realista aos estranhamentos da realidade que se tornou surreal em sua reprodução contínua de padrões insustentáveis. Outras vezes, gerando provocações criativamente surreais e expansivas para uma realidade dormente em seu cotidiano estabelecido, limitadamente normal e formal sobre princípios e valores que norteiam atitudes e escolhas plausíveis de ressignificação ou transformações. Trata-se de um olhar-agir intervencional de quem está inserido, pertencente e participante; ao mesmo tempo, que consegue se distanciar e ver “de fora” o que acontece na situação vivida, disparando perguntas geradoras, diálogos significativos e práticas criativas. Trata-se de resiliência criativa e design de processos, atuando para maximizar as bordas do viver urbano.


***

[1] Resiliência é um termo da física, aplicado à biologia para definir a capacidade de elasticidade ou ainda a capacidade de sobrevivência de determinado organismo ou sistema em meio a grande impacto. Esse termo também vem sendo utilizado para compreender a capacidade estruturadora das comunidades e redes sociais que passam por situações críticas.

[2] A permacultura foi criada pelos ecologistas australianos Bill Mollison e David Holmgren na década de 1970. O termo, cunhado na Austrália, veio de permanent agriculture (agricultura permanente), e mais tarde se estendeu para significar permanent culture (cultura permanente). A sustentabilidade ecológica, ideia inicial, estendeu-se à sustentabilidade dos assentamentos humanos locais. Trata-se de um método holístico de planejar, atualizar e manter sistemas de escala humana, ambientalmente sustentáveis, socialmente justos e financeiramente viáveis.


*Este artigo está publicado no livro “NA BORDA”.


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