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  • Foto do escritorFlavia Vivacqua

ESPAÇOS INTENCIONAIS E A MANIFESTAÇÃO DA CULTURA DA COLABORAÇÃO

“No sentido construtivo da palavra, a base da governança só pode ser a clareza do intento comum e a confiança no comportamento previsto, tudo muito bem temperado com bom-senso, tolerância e cuidado pelos outros como seres humanos.” — Dee Hock


Como todo grande piquenique, cada um trouxe o que pôde para compartilhar naquele encontro memorável. Cores, sabores e saberes, tudo cabia naquele lugar de convergência.

O território onde tudo aconteceria foi escolhido cuidadosa - mente. Havíamos pesquisado detalhes. Fome de que? Sede de que? Quantos éramos? Como chegar? Do que precisávamos? O que precisava ser feito? Quem ia ali, independente de nós? O que, naquele lugar, poderia nos servir como apoio? Quais eram os pontos de referência? Aos pés de qual árvore iríamos nos sentar? Como nos protegeríamos em caso de chuva ou outras imprevisíveis intempéries? Como seria o convite? Como faríamos chegar tal convite e acolheríamos aqueles que ainda não conhecíamos? Como cuidaríamos do nosso lixo e de tudo aquilo que era excedente e sobra? Quanto tempo imaginávamos passar ali – e como? Nada nos passava despercebido! Marcamos em um papel e em nossos corações o propósito que nos levava àquele encontro, temperado com tudo aquilo que acreditávamos ser bom, bem e belo. Como um consenso comum, cada um trazia o melhor que podia oferecer, não eram realmente necessários grandes ornamentos e toalhas rendadas, mas o que seria de nutrição, para matar a sede e a fome, era indispensável!


***


Existe uma história que há pouco iniciou e que estamos vivendo, sobre o amadurecimento de uma geração no Brasil dedicada a gestão e governança, na busca por estabelecer novas práticas colaborativas, autonomistas e capacitantes – e por isso mesmo atentos aos novos vocabulários e conceitos – para a ressignificação do trabalho e da forma como nos organizamos socialmente e em nossas iniciativas. O mesmo se passa na arte e na cultura.


Mais do que espaços compartilhados de trabalho, estamos falando dos espaços intencionais, aqueles que têm ao centro do que é comum ao trabalho dos envolvidos um propósito claro e princípios definidos. Agora, definitivamente, o trabalho não fala apenas dos benefícios que retorna ao sujeito e seu sistema familiar ou institucional, característica própria dos sistemas unicamente competitivos; mas, somado a isso, do que ele realmente significa e retorna à sociedade e ao meio ambiente de que veio, característica própria dos sistemas colaborativos.


Essas somas, em que competitivo e colaborativo coexistem e se relacionam, compõem todos os sistema naturais. Talvez, essa visão compartilhada de que somos seres sociais seja, finalmente, uma realidade, uma manifestação da ressignificação da noção do trabalho que impacta conscientemente e, por isso mesmo, é impactado.


Essa ressignificação do trabalho como ação regenerativa no mundo, de forma transversal, parece assumir decisivamente alguns princípios: autonomia, colaboração, compartilhamento, auto-organização e transparência. E tudo parece girar ao redor e em busca de sentimentos e percepções de confiança, pertencimento, equivalência, equilíbrio do dar e do receber e sentido... profundo sentido de existência!


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Ao longo de tantos “piqueniques” vivenciados e de certa impossibilidade de falar de suas belezas e tristezas. Bem longe de buscar definições ou caixas fechadas para o que o futuro nos reserva, a todos. Trago aqui meu lanche para compartilhar debaixo da árvore: um breve refletir de um olhar, sobre o que está iminente com esses criativos espaços intencionais.


É bem provável que a palavra cooperação tenha tomado seu maior sentido por volta de 1840 com o surgimento da primeira cooperativa, na Inglaterra. Um conjunto de operários em ação, quando em meio as máquinas da indústria, opressão e semi-escravatura, conjuntamente com familiares e certa compreensão de comunidade, resolveram se organizar para produzirem e fornecerem seus próprios alimentos.


A idéia de cooperação ganhou um fôlego a mais depois da Segunda Guerra Mundial, com a matemática complexa da teoria do jogo cooperativo e jogo não cooperativo, que influenciou a lógica econômica e certa análise organizacional em muitos países, otimizando a mudança do pólo econômico da Europa para os EUA, a criação de setores industriais globais como a manufatura na China ou o agronegócio no Brasil, permitindo o surgimento de um cenário globalizado... tudo ainda sobre a lógica da mecanização da escala industrial.


Hoje, em plena falência dessa lógica industrial mecanicista, sobretudo por nos colocar, civilizatoriamente, em riscos iminentes diante de impactos ambientais e desigualdades sociais, já não era sem tempo que uma nova geração - composta por filhos e netos de pioneiros, mas não só eles - esteja vividamente interessada em viver o que se vive e fazer o que se faz de outras maneiras, imprimindo uma nova cultura emergente, a cultura da colaboração.


Colaboração aqui está compreendido como co-labor-ação (coletivos de labor em ação). Labor, aqui, parece facilitar a ressignificação do trabalho, buscando distanciá-lo de sua origem escravicionista, cruel e sofrida que a palavra carregava de sua origem do latim1 .


Trata-se de uma relação diferenciada com o processo/tempo, com o lugar/espaço, com o fazer e suas consequências, com as pessoas, os modos de valoração, seus valores e motivações. É possível contar a história dos coletivos, sobretudo os coletivos de arte como entendemos hoje, passando pelas culturas tradicionais, os pioneiros do início do século passado até a contracultura das décadas de 1960 e 1970.


Mas, foi mesmo na década de 1990, com os movimentos antiglobalização e a mercantilização de tudo, que se fizeram emergentes nos anos 2000 no Brasil (e não somente) as iniciativas coletivas na arte (e não somente) que começaram a tomar a escala das cidades, das multidões, fazendo das relações de afeto, dos espaços públicos e de seus temas sociais a nutrição para seus fazeres criativos.


Contudo, estamos falando de uma geração que presencia os últimos anos de transição de uma sociedade que vivia em uma lógica apenas mecanicista e industrializada, cheia de reprodutividade seriada, para uma outra, completamente hiperconectada... ao mesmo tempo em que os problemas socioeconômicos, políticos e ambientais tornam-se cada vez mais acumulados e acelerados. Não que exista uma única compreensão sobre tudo o que tem acontecido. Muito ao contrário disso, há uma diversidade de olhares tanto quanto existem pessoas.


Mas, o que existe de comum é a impossibilidade de negação de que algo mudou e a compreensão de que não é possível mais lidar com qualquer coisa que seja a partir das mesmas perguntas que fazíamos! E é a partir desse contexto que os espaços intencionais emergem.


Atuando como pontos de referência local que são capazes de convergir e simultaneamente influenciar, como verdadeiras plataformas de experimentação, formação, difusão, circulação e proposição de conteúdos inovadores, altamente criativos, eticamente impactantes na busca por ambientes regeneradores e socialmente transformadores. Cheios de visão para aquilo que o mercado demora a ver ou não quer ver.


As experiências nesses espaços criam relações de comprometimento coletivo capaz de gerar sentimentos de pertencimento e confiança. Lugares de compartilhar estruturas, gerar saltos de aprendizagem. Ultrapassando ruídos e concatenando dados a informações, permitindo, assim, que o conhecimento se torne compreensão e que possamos, então, agir com sabedoria.... Compartilhar e agir esses saberes é do que se trata a intencionalidade ou o intento.


Esses espaços, autogovernados por pessoas conscientes de que estão a serviço de algo além de seus próprios desejos e que também são anfitriões do novo e do diferente que emerge na sociedade, desenvolvem-se a partir de processos de co-criação, como danças com a complexidade de encontros e ações desenhadas para estar em relação com os contextos específicos onde estão inseridos.


Ações que surgem da consciência de sua profunda impermanência e suas fragilidades, mas determinadas por certo poderoso consenso coletivo da realidade apresentada. Livres para suas escolhas, característica própria à autonomia que tanto se preza, e entregues aos seus desdobramentos, longe da violência do total caos ou do total controle, mas, sim, em busca da organização caórdica2.


O que estimula, também, a intencionalidade é ter a autonomia como liberdade de fazer escolhas, de se autonomear ou nomear aquilo que se faz ou se cria, nos colocando sob a perspectiva da responsabilidade ou da “habilidade de responder” por nossas ações e suas relações – o que nos exige certa consciência e crítica sobre o que vivemos e como vivemos. Contudo, a criatividade parece estar na capacidade de fazer “perguntas geradoras” – como propunha Paulo Freire. Perguntas que nos permitam olhar por outros ângulos os desafios, as dificuldades e as fragilidades, como verdadeiras oportunidades. Perguntas que nos levem a outras novas e importantes escolhas no sentido de soluções inovadoras.


Na cultura colaborativa, com as práticas de autogestão busca-se abolir toda e qualquer hierarquia opressora e manipuladora, o que estimula o surgimento de novas abordagens organizacionais voltadas a uma visão sistêmica que compreende uma hierarquia natural e à compreensão da importância de haver lideranças dinâmicas ou situacionais.


Estamos falando de uma inteligência coletiva, que se propõe auto-organizada, que emerge cada vez mais consciente da irreversibilidade de suas ações ou ainda da percepção sobre a construção de realidade estabelecida por escolhas ou não escolhas.


Intenção, aqui, diz da energia direcionada às escolhas feitas, que se manifestarão em determinadas ações em relação ao contexto específico onde se está inserido. As intenções e o modo como as ações se manifestam no mundo dizem daqueles que as nomearam e de suas visões de mundo.


Dessa forma, um espaço autônomo torna-se um espaço intencional na medida em que ele se reconhece, determina seus campos de atuação, suas formas organizativas e, consequentemente, suas ações.


Além de se autonomear, como quem faz ajustes de rota em pleno vôo, ele se define e se redefine no processo, a partir de princípios e propósito sempre revisitados como critérios de validação e valoração das decisões nas quais os acordos e o trabalho se desdobram.


Avaliação continua torna-se fundamental! São processos coletivos por natureza, buscando geralmente uma relação pacífica e harmônica entre seus membros; apoio mútuo; respeito e cuidado consigo, com o outro e com o local onde se radicam.


A capacidade e a agilidade da auto-organização, assim como a descentralização para processos cada vez mais bem distribuídos e inclusivos, estão diretamente relacionadas com a habilidade de estabelecer processos transparentes e adaptativos às situações que emergem.


A transparência permite aflorar a ética, capaz de criar um alinhamento da visão macro da organização, gerando equivalência de oportunidades e voz entre os pares. Ao mesmo tempo, ela cria frentes de ações focais, viabilizando e considerando ações eficientes, mesmo que pontuais, pequenas e locais.


Exatamente como a sociocracia tradicional e 3.0 aborda a transparência, a equivalência e a eficiência tornam-se, simultaneamente, princípios e práticas.


***


Sentados sobre aquela árvore, com aquelas pessoas, vivendo o viver, fazendo o que havíamos laborado, saciados com o suficiente de tudo aquilo que compartilhamos... celebramos!


*texto integrante da publicação INDIGESTÃO, do Centro de Arte e Pesquisa JACA.


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